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terça-feira, 23 de novembro de 2010

DUAS FORMAS DE FAZER DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL

A imagem da dogmática jurídico-penal alemã que impera no mundo latino é, aproximadamente, a seguinte. Dois ou três grandes sistemáticos constróem seus imponentes edifícios teóricos. Estas teorias alcançam status de verdadeiros paradigmas, “ismos”, dominam o debate por uma geração inteira, até que venha uma nova geração a propor outros rumos. Haveria, assim, uma época jusracionalista, de Feuerbach, sucedida pelo pragmatismo de Mittermaier, que teria dado lugar ao Hegelianismo de Abegg, Köstlin e Berner, que seria sucedido pelo positivismo normativista de Binding, por sua vez suplantado pelo positivismo naturalista de Liszt e Beling, passando-se à época de Mezger e do seu neokantismo, à época de Welzel e Maurach, com o finalismo, e agora à época do funcionalismo de Roxin e de Jakobs. Estes autores cuidariam de grandes temas – para mencionar alguns que hoje estão em voga: “garantismo”, “funcionalismo”, “abolicionismo”, “princípio da legalidade”, “teoria da pena”, “ontologismo vs. normativismo”, “bem jurídico”, “conceito de ação”, “conceito de injusto”, “culpabilidade e prevenção”, “sociedade do risco”, “modernização do direito penal”, e, mais recentemente, “direito penal do inimigo”. Nós acompanhamos à distância, mas com vivo interesse, o desenrolar destes debates, e escrevemos um sem número de artigos em que nos posicionamos a respeito – como o torcedor que grita por sua equipe ao ver uma partida de futebol pela televisão. Admiramos aqueles dentre nós que dominam estas discussões e são capazes de mover-se por searas tamanhamente obscuras.
Pois bem, a tese que sustentarei nestas sucintas reflexões é a de que o modelo apresentado é, enquanto descrição do desenvolvimento da dogmática jurídico-penal, inexato, e, enquanto prescrição de como ela deveria ser cultivada, pernicioso.
O modelo é inexato, não pela óbvia simplificação que ele implica – todos sabem que há hoje mais penalistas alemães do que Roxin e Jakobs – mas por transmitir a impressão de que a ciência do direito penal evolui como uma ciência de grandes temas, e não de pequenos e prementes problemas. Tomemos, por ex., um dos grandes temas, talvez um dos maiores temas do direito penal: o princípio da legalidade. A discussão a seu respeito, reproduzida com maior ou menor exatidão em nossos manuais, percorreu esses duzentos anos desde Feuerbach animada por preocupações um tanto concretas. O que move Feuerbach a formular seu brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege e a inseri-lo no bojo de sua chamada teoria da coação psicológica (segundo a qual a finalidade da pena é intimidar a população através da ameaça de um castigo, o que deve ocorrer por meio de uma cominação legal), é o problema específico do então admitido direito dos juízes de mitigar a pena legalmente prevista (curioso que hoje se defenda algo similar entre nós). Forçados a trabalhar com uma legislação que continha várias penas atrozes, os juízes do fim do séc. XVIII viram uma saída na teoria de que as penas legalmente cominadas se referiam somente a casos paradigmáticos, em que o autor obrasse de modo plenamente culpável. Circunstâncias extraordinárias, ainda que não legalmente previstas,
justificariam uma pena extraordinária, tampouco legalmente prevista. É em primeiro lugar contra essa prática concreta que se insurge Feuerbach e sua teoria da coação psicológica.
Se continuarmos acompanhando a evolução do debate em torno deste princípio, veremos que havia sempre um fator um tanto concreto a dar vida ao debate. Por ex., na década de 30, quando se reaviva a discussão em torno da legalidade, o fator era a eminência e depois a efetivação da permissão de analogia pelo legislador nacional-socialista (1935). Na década de cinqüenta, a recém-promulgada Lei Fundamental fazia que se voltasse a perguntar sobre o sentido da legalidade enquanto dispositivo constitucional. Na década de 60, o problema central foi o da extensão retroativa dos prazos prescricionais dos delitos praticados pelo nacional-socialismo. E na década de 90, o debate se reacendeu em torno do problema da punibilidade das violações prima facie legais de direitos humanos na Alemanha Oriental
Poder-se-ia demonstrar o mesmo em relação à maioria dos grandes temas que acima mencionei. O que me importa, contudo, é extrair uma conclusão. A conclusão é a de que uma ciência do direito penal que se ocupa apenas de si própria, de seus próprios conceitos e de suas próprias construções, não existe em lugar algum, e muito menos no país que tem reputação de ser teórico por excelência. A contraposição popular entre um gênio alemão, teórico e um gênio anglo-saxão (ou por vezes latino), prático é, pelo menos no que diz respeito ao primeiro, falsa. O gênio alemão não é meramente teórico, e sim teórico na medida em que o sente necessário para resolver o problema prático. E talvez esteja aqui a genialidade deste gênio.
Outro exemplo talvez esclareça o que se está dizendo. Discutimos hoje acaloradamente as relações entre culpabilidade e prevenção, o chamado conceito funcional de culpabilidade. Mas o sentido desta discussão aparentemente abstrata é, em grande parte, a solução de problemas um tanto concretos, muitos deles cuja mais importantes reflexos se fazem sentir fora do chamado direito penal nuclear, a saber, no direito penal econômico. Um desses problemas é, por ex., se aquele que se encontra em erro de proibição já terá a inevitabilidade deste reconhecida se tiver ido a um advogado que dá um parecer espontâneo, ou se a inevitabilidade só se poderá admitir quando o advogado, antes de emitir seu parecer, examine cuidadosamente a questão; outro deles é se a informação errônea de um agente público (por ex., de um policial), já fundamenta a inevitabilidade, ainda que o conteúdo da informação não pareça plausível. É claro que do conceito abstrato ao problema concreto há um longo caminho, que pode ser percorrido de várias maneiras. Ainda assim, será o conceito abstrato que mais ou menos orientará como se dará o percurso. Por ex., uma visão que centre a culpabilidade apenas no poder-agir-diversamente tenderá a inclinar-se pela negação da evitabilidade nas duas hipóteses (e assim também decidiu a jurisprudência alemã, partindo de uma tal perspectiva).
E por isso o modelo acaba sendo, além de inexato, pernicioso. Porque a sugestão nele contida, de que o que importa são os grandes temas, leva a que nos afastemos dos problemas concretos. Acabamos atribuindo valor científico apenas aos grandes temas, admirando apenas aqueles dentre nós que escrevem sobre estes grandes temas, com isso desprezando e desestimulando aquele que tem o fôlego e a finura necessários para embrenhar-se nas pequenas, mas dificílimas questões concretas. Não vemos que estamos fazendo não grande dogmática, mas dogmática pela metade. Parece-me que, ao invés de discutirmos culpabilidade e prevenção, temos de discutir os critérios da evitabilidade do erro de proibição; ao invés de só falar abstratamente na legalidade, temos de sair à busca de critérios diferenciados para fixar os limites concretos de exigência do
referido princípio face, por ex., a normas penais em branco e a conceitos indeterminados. Ou, para usar um exemplo brasileiro: ao invés de discutir-se a possível redução da idade mínima de imputabilidade penal, de um lado, e as relações entre culpabilidade e prevenção, do outro, dever-se-ia tentar elevar o nível do primeiro debate aproximando-o e enriquecendo-o com o que sugere o segundo.
Para um último exemplo, pense-se na discussão, bem conhecida no Brasil, sobre “sociedade do risco” e “modernização do direito penal”. Enquanto essa discussão for travada com base em conceitos globais, continuaremos a ver teses manifestamente errôneas serem sustentadas como se fossem inquestionáveis para um penalista liberal. Não raro se vê uma condenação indiferenciada de todos os bens jurídicos coletivos, sem que se mencione uma palavra sobre os delitos de corrupção, que têm por objeto de proteção um bem claramente coletivo; ou uma recusa total aos delitos de perigo abstrato, considerados mesmo inconstitucionais, sem que se esclareça se esse juízo de inconstitucionalidade atinge também o art. 270 CP (envenenamento de água potável). Os critérios com base nos quais se poderá distinguir o legítimo e o ilegítimo no direito penal “moderno” têm de ser muito mais sofisticados do que “bem jurídico coletivo” e “crime de perigo abstrato”, e só será possível formulá-los sujando as mãos com os desafios que nos impõe cada tipo da nova legislação penal.
O grande teórico é como uma sequóia. Não é por acaso que ela não cresce no deserto, mas apenas no solo fértil e firme de um intenso e sofisticado debate sobre problemas.


Dr. Luís Greco * Doutor em Direito, LL. M. pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, Alemanha. Assistente científico junto à Cátedra do Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Bernd Schünemann, na mesma instituição.

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