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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO E SUBSIDIARIEDADE

No momento em que se dá a público um novo veículo de discussão de um tema tão envolvente como o Direito penal econômico, parece oportuno apresentar linhas gerais que certamente serão verticalizadas ao longo das sucessivas edições deste periódico e trarão aos interessados neste campo do Direito penal, muito mais luzes do que as inquietações que se pretende aqui esboçar.
O campo de abrangência do Direito penal econômico hoje é muito mais amplo do que apenas matéria financeira, já que há um vasto contingente de áreas também alcançadas pela regulamentação jurídico-penal. Basta constatar a existência de crimes contra as relações de consumo, crimes contra o ambiente, crimes falimentares, crimes relacionados aos segredos industriais, à atividade publicitária e até mesmo à organização do trabalho. Isso sem falar, é claro, dos tradicionais crimes tributários e financeiros, agora vinculados estritamente ao branqueio de capitais.
Toda esta ampliação não é mais do que reflexo do processo de expansão do Direito penal, tão bem identificado por Silva Sánchez1. Esta realidade concreta deriva de uma postura tanto falaciosa quanto cínica de parte das instâncias de controle que deve, sempre que possível, ser posta à mostra. Este é o objetivo deste pequeno ensaio: colocar em evidência a fraude que alimenta o desmedido crescimento do Direito penal econômico, tomando por campo de provas justamente o seu cerne: o Direito penal tributário.
A questão fundamental que ronda o tema diz respeito à expansão do Direito penal. Esta deve ser reconhecida como um fato negativo, já que qualquer aumento de tipificação guarda direta proporção com o recorte das liberdades individuais e reflete até que ponto se está disposto a assumir tal recorte para que o Estado gestione o restante de tais liberdades. Quanto mais pedimos por Direito penal incriminador, mais estamos pedindo paradoxalmente pela diminuição de nossas liberdades, razão pela qual, o processo de expansão necessariamente culmina por revelar sua faceta tenebrosa.
Ocorre que o discurso de um Direito penal de um Estado social e democrático de direito vem tomando corpo e retirando as vendas de certeza que sempre tivemos ao buscar amparo no direito positivado, sem medir-lhe as conseqüências. Hoje, o pensamento a respeito das funções que cumpre o Direito penal nos conduz diretamente à análise de princípios que promovem a necessária filtragem do direito posto em busca de um equilíbrio.
É nesse cenário que cabe perguntar a respeito da relação entre o Direito penal tributário e o princípio de intervenção mínima, especialmente em sua vertente da subsidiariedade. A pergunta passa a ser: é realmente necessário um Direito penal tributário? Em que termos? Até que ponto o controle social no âmbito tributário efetivamente deve estar alocado para a instância penal?
Esta análise, evidentemente passa por uma escolha de perfil a respeito da missão do Direito penal. Adota-se aqui a idéia de controle social do intolerável a partir da proteção seletiva de bens jurídicos 2.
Partindo de que o Direito penal deve ocupar-se somente dos ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes para o desenvolvimento do indivíduo em sociedade, reservando para as demais instâncias de controle – jurídico ou não – todo o resto, parece necessário perquirir, no campo dos crimes tributários, se efetivamente as hipóteses reclamam a intervenção jurídico-penal.
Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, buscar saber o que protege a incriminação penal tributária, ou seja, qual é o bem jurídico protegido no chamado Direito penal tributário.
É claro que existe uma imensa gama de incriminações, algumas inclusive cujo desenho revela serem tipos penais complexos, vinculados a uma pluralidade de bens jurídicos, como é o caso do crime do art. 1º, inciso III da Lei 8.137/90, que inclui a supressão e a redução de tributo mediante uma falsificação, afetando o bem jurídico fé pública, além daquele específico relacionado com a supressão ou redução de tributo. Porém, existem também vários tipos penais constantes do rol dos crimes tributários em que a atividade criminosa diz respeito única e exclusivamente à falta de recolhimento de tributo, como é o caso do descaminho (art. 334 do Código Penal) ou mesmo a falta de recolhimento tributário (art. 2º, inciso II da Lei 8.137/90).
Nestes casos, em que a conduta se resume à falta de recolhimento de tributo, a doutrina tem discutido se o bem jurídico afligido seria a o patrimônio público ou o direito à arrecadação tributária. Tanto em um caso como em outro, porém, parece inarredável a falta de justificativa para a intervenção jurídico-penal quando cotejado com o princípio de intervenção mínima.
Vejamos. Se o bem jurídico for o patrimônio público, seria preciso que o valor em questão efetivamente inviabilizasse ou prejudicasse de modo relevante o desenvolvimento patrimonial do ente federativo vítima da sonegação para que se justificasse a intervenção jurídico-penal. Isto certamente reduziria a um mínimo as hipóteses em que efetivamente seria o caso de emprego do Direito penal. Não se trata de, em um exercício de lógica simplista limitar o quantum de sonegação ao quantum revelado como mínimo para o despertar do interesse persecutório administrativo. Não porque não o fato de não haver interesse administrativo certamente revela o desinteresse penal, mas a existência de interesse administrativo, contrario sensu, não implica em necessário interesse penal. A filtragem há de ser pelo princípio de intervenção mínima em seu enunciado concreto, ou seja, é preciso que haja efetivo interesse revelado pelo prejuízo ao desenvolvimento patrimonial do ente federativo afetado pela sonegação.
Se, ao contrário, o bem jurídico for considerado o direito à arrecadação tributária, em primeiro lugar haveria de se questionar a efetiva relevância deste bem jurídico, posto que o Estado não é portador de nenhum direito. Em uma conformação de Estado dentro de um modelo contratualista, temos que o Estado é formado por várias pessoas que cedem a um “ente” determinado, a parte de sua liberdade em prol de que o restante dela seja garantida por este mesmo “ente”. Isto revela então, que o “ente” Estado não é portador de nenhum direito, mas meramente gestor dos direitos de todos, para com quem ele tem, isto sim, deveres. Assim, não há que se falar em direito à arrecadação, mas sim de dever de arrecadação, justamente para que se possa prover as necessidades demandadas por aqueles que formaram o Estado.
É necessário ver, então, se o cumprimento deste dever é violado de tal forma que se inviabiliza o seu cumprimento. Só assim estará presente a justificação necessária para a intervenção penal, ou seja, para a intervenção em ultima ratio. Cumpre lembrar que, neste caso, estaríamos diante da hipótese de um dos chamados delitos de violação de um dever (Pflichtdelikte), ou seja, o criminoso violaria o dever de pagar o tributo, prejudicando o cumprimento, por parte do Estado, de seu próprio dever.
Aqui se chega à vertente da subsidiariedade: tanto em um caso quanto em outro, ou seja, qualquer que seja a identificação do bem jurídico que se dê, não basta que se reconheça a gravidade do ataque para o bem jurídico, nem somente a relevância qualitativa e quantitativa deste. É preciso ainda, que se demonstre que o socorro penal é necessário diante da ineficiência do suprimento da proteção a estes bens jurídicos, pela intervenção de outra instância de controle menos gravosa.
A comparação resulta evidente: no Direito penal tributário onde não há outro bem jurídico atingido (crimes essencialmente tributários e não crimes complexos) a seara administrativa concorre obrigatoriamente em todas as hipóteses de existência de delito. Entretanto, as diferenças são abissais. No âmbito administrativo-tributário, a autuação tem presunção de legitimidade, cumprindo ao contribuinte demonstrar que não deve; a discussão jurídica imprescinde de garantia do juízo quanto aos valores tributados; a discussão se trava dispensando o processo de conhecimento e ingressando diretamente na etapa da execução. No direito penal, ao contrário, ativa-se a presunção de não culpabilidade com múltiplas etapas recursais; somente a eventual condenação com trânsito em julgado pode, caso referido na sentença, determinar a perda dos bens ou produtos do crime como conseqüência acessória extra-penal; o processo prescinde de qualquer garantia econômica e se desenvolve em toda a sua etapa de conhecimento, para somente a partir da sentença condenatória com trânsito em julgado obter o título executivo.
A pergunta é elementar: por qual das vias se obtém uma melhor proteção do bem jurídico? Por qual das vias se garante o patrimônio público ou o direito/dever de arrecadação com maior eficácia.
A medida deve ser, obviamente, a dos interesses dos cidadãos que estão remotamente escondidos por detrás do simbólico bem jurídico coletivo anunciado em qualquer das interpretações. Assim, por qual das duas vias, eu e você, membros desta sociedade, podemos ver mais facilmente o Estado de posse dos valores tão necessários para prover as nossas necessidades?
Parece não haver qualquer dúvida. O Direito penal aqui simplesmente não tem papel algum. É um figurante simbólico, banalizado e desrespeitado, que não tem nenhuma efetividade nem responde a nenhuma necessidade. Por outra, é importante ter em mente que a obrigatória saída de cena do Direito penal não deixa, atrás de si um vácuo, mas sim uma missão importantíssima, para cujo cumprimento é chamado o Direito Administrativo.

1 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Expansión del Derecho penal. Madrid: Civitas, 1999.
2 Para detalhes a respeito, remeto a BUSATO, Paulo César e MONTES HUAPAYA, Sandro. Introdução ao Direito penal. Bases para um sistema penal democrático. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 158 e ss.

Por Paulo César Busato: Promotor de Justiça e professor de Direito Penal da UFPR e de outras instituições.

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