Sejam bem vindos defensores da liberdade!!

O Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, fundado por pesquisadores com uma visão humanista de direito, dá as boas vindas a todos aqueles que como nós receberam a missão de lutar para que o ser humano sempre esteja acima das superestruturas sociais, sendo o alfa e o ômega do processo de construção de uma sociedade livre e justa.















































































quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROBLEMÁTICA DO TRATAMENTO DO ERRO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO

Robson A. Galvão da Silva
Há certo consenso na doutrina ao se afirmar que o setor relativo ao Direito penal econômico possui determinadas peculiaridades que permitem individualizá-lo e que servem para o diferenciar dos outros setores que tradicionalmente foram enquadrados no Direito penal “clássico”, “primário”, “comum” ou “nuclear”. Chegou-se a cogitar sobre uma verdadeira autonomia científica do Direito penal econômico frente ao Direito penal primário1
Como se sabe, a legislação brasileira não confirma ou reconhece explicitamente tal autonomia. No entanto, isso não é óbice para que se postule um tratamento mais adequado, considerando-se essas especificidades, na medida em que as diversas instituições dogmáticas elaboradas pela teoria penal permitam chegar a soluções jurídicas distintas das que se sustentam para o Direito penal primário, com redução de garantias2. Em alguns casos, trata-se simplesmente de efetuar algumas matizações ou correções a instituições penais tradicionais, quando elas são utilizadas como instrumento para a interpretação dos delitos econômicos, mas, em outros casos, propõe-se, inclusive, a idealização de novos princípios jurídico-penais de imputação, diferentes dos tradicionais.
Neste trabalho, não se ingressará na discussão a respeito da aventada autonomia científica do Direito penal econômico. Isso decorre, além da limitação de espaço, da constatação de que o legislador brasileiro não fez, até o momento, essa opção. Os delitos econômicos permanecem sujeitos à regulação da Parte Geral do Código Penal. Conseqüentemente, estão submetidos aos princípios de garantia tradicionais e sujeitos às mesmas regras de imputação previstas para o Direito penal primário.
Apesar disso, no que se refere aos critérios de imputação, eles não podem ser transladados acriticamente ao âmbito econômico, como adverte MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ 3. O que se tem feito é acomodar as tradicionais estruturas às características particulares dos delitos econômicos, sem que se matize qualquer princípio de garantia, sendo isso o que deve ser buscado pelo aplicador do Direito, pois, em algumas situações, não há como aplicar as instituições tradicionais ao Direito Penal econômico, sem reduções de garantias.
É assente na doutrina que na matéria do erro coloca-se uma das questões de maior relevo4, que permite deixar clara a especificidade das normas do Direito penal econômico e, consequentemente, atesta a
necessidade de reformular as teses e conclusões que tradicionalmente se vinha sustentando em relação aos delitos pertencentes ao Direito penal primário 5.
A importância prática do tema é grande, visto que a distinção entre erro de tipo e erro de proibição ganha ainda mais relevância especificamente nesse setor, ao se constatar que no Direito penal econômico, normalmente, não são criminalizadas modalidades imprudentes. Assim, ao se considerar um erro como sendo erro de tipo, ainda que se considere vencível, ter-se-á a absolvição do acusado. De outra via, a questão gera efeitos em matéria de participação, porque se o erro se situa no âmbito da exclusão do tipo, a não aplicação da pena estender-se-á às condutas dos partícipes.
Proporcional à importância do assunto é a sua dificuldade. Com efeito, em razão das peculiaridades do bem jurídico protegido pelo Direito penal econômico, o legislador passou a usar algumas técnicas específicas de tipificação. Não há dúvida que o tipo dos delitos econômicos é repleto de elementos normativos, elementos de valoração global do fato e de remissões a outras normas jurídicas 6. A conduta incriminada, em grande parte, não é composta por uma realidade objetiva do mundo do ser, mas por uma realidade referente a normas e valorações jurídicas (o que não lhe tira seu caráter objetivo).
Tradicionalmente, aceita-se que a discrepância entre o desconhecimento subjetivo de dados objetivos se resolve no sentido de considerar que o desconhecimento é de fato e, portanto, da significação central do próprio atuar, exonerando o agente: quem não sabe o que faz não atua dolosamente.
Conforme bem observa TIEDEMANN, no entanto, a convicção do sistema baseado sobre tais princípios entra em crise nos casos em que o objeto da falsa representação subjetiva não está constituído por uma realidade objetiva do ser, mas pela realidade – também objetiva – das normas e das valorações jurídicas. Pensamentos jurídicos antigos consideravam esses erros irrelevantes, majoritariamente sobre a base da presunção de que a validez da norma não pode fazer-se depender de seu conhecimento e aprovação por parte dos particulares e, também, afirmando que com o reconhecimento de um erro relevante sobre a norma, o ordenamento jurídico questionaria sua validez: error iuris nocet. Sistemas mais evoluídos têm admitido, faz relativamente bastante tempo, exceções a essa regra, outorgando relevância ao erro de Direito nos casos em que as normas jurídicas não prescrevem, mas descrevem. Em outras palavras, nos casos em que o erro não se projeta sobre o mandato ou a proibição, mas sobre elementos do tipo ou pressupostos das causas de justificação. O erro sobre o caráter alheio de uma coisa já no Direito romano excluía o dolo de furto. Esse erro não é idêntico ao que recai sobre a proibição de subtrair coisas alheias 7.
O que ocorre, no Direito Penal econômico, é que a situação de fato, em grande parte, não é composta por uma realidade objetiva, do mundo do ser, como ocorre na maioria dos delitos tradicionais. Ao contrário, a situação típica refere-se a situações proximamente ligadas ao Direito, sendo essa a razão de o legislador utilizar
na descrição dos tipos econômicos elementos normativos jurídicos, elementos de valoração global do fato e a remissão a outras normas jurídicas. Assim, dentro da diferenciação entre representação errônea de tipo moral e de tipo intelectual, o erro de proibição no âmbito do Direito penal econômico se encontra, certamente, mais próximo do grau de valoração intelectual. Portanto, seu correto enquadramento no sistema penal deriva da teoria da norma jurídica, cujos aspectos objetivos devem encontrar, em todo caso, certa correspondência na consciência do sujeito8.
O tratamento do erro sobre os elementos normativos do tipo, sobre os elementos de valoração global do fato e sobre o complemento das leis penais em branco é extremamente controvertido na doutrina já quando se trabalha com o Direito penal clássico. Especificamente a respeito do erro sobre os elementos normativos, MAURACH/ZIPF afirmam ser a questão mais complexa e aberta de toda a teoria do erro, diante do grande número de opiniões conflitantes sobre o tema na doutrina9. Há, ainda, a questão da própria definição e delimitação dos elementos descritivos e normativos, bastante controvertida, apontando diversos doutrinadores no sentido de sua relativização10. A complexidade amplia-se ao se transladar essa problemática ao âmbito do Direito penal econômico11.
Não há como se deixar de mencionar, ainda, o elevadíssimo número de leis penais esparsas nesse âmbito, cujas condutas incriminadas nem sempre são desvaloradas socialmente, o que também deve ser considerado no tratamento do erro.
Diante das particularidades do Direito penal econômico, a doutrina tem apresentado três propostas para um tratamento mais adequado do erro: a) elaboração de alterações legislativas, de modo a que, nesse setor, sejam aplicados critérios idênticos aos da teoria do dolo; b) ampliação do âmbito de emprego do erro de tipo em prejuízo do erro de proibição; e, c) alargamento da esfera de invencibilidade do erro de proibição, com critérios diferentes dos que regem para o Direito penal primário. A segunda opção é que tem angariado mais adeptos na Europa.
No entanto, o tema, salvo raríssimas exceções, sequer é discutido no Brasil. Como consignado, não se deve buscar uma solução que adote critérios diferenciados para o Direito penal primário e para o Direito penal econômico. Acredita-se que é possível alcançar uma resposta adequada para o âmbito econômico, que não exija uma abordagem diferenciada dos delitos tradicionais. O que há são tipos legais, existentes em ambos os setores, ainda que preponderem no Direito penal econômico, com características peculiares, o que recomenda um tratamento de acordo com tais especificidades.
Diante disso, surge em boa hora o Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, como fórum de debate desses assuntos que não podem mais permanecer alheios à maior parte da doutrina nacional e, sobretudo, dos operadores pátrios do Direito.

Notas:

1 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Imputación Subjetiva. Manuales de Formación Continuada. Madrid, n. 14, p. 99-180, 2001. p. 100.
2 TIEDEMANN consigna que “Con cierta independencia de esta situación legal, el Derecho penal económico ofrece unas particularidades que se refieren a cuestiones de la Parte general ya sea desde el punto de vista de la técnica legislativa ya sea como consecuencia de que el Derecho penal económico abarca nuevos fenómenos sócio-económicos y llega por ello a soluciones novedosas en cuanto a su contenido”. TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico: (Comunitario, español, alemán). Barcelona: PPU, 1993. p. 157.
3 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Manuales de Formación Continuada. p. 100.
4 TIEDEMANN afirma que “Las cuestiones referentes al error constituyen para la dogmática jurídico-penal el banco de pruebas de la coherencia y validez de la teoría jurídica del delito. La proyección subjetiva de datos objetivamente existentes representa el supuesto normal en el cual la congruencia entre „lo objetivo‟ y „lo subjetivo‟ confirma la estructura del sistema penal”. TIEDEMANN, Estudios Jurídicos, p. 895.
5 Nesse sentido, vide: MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico y de la Empresa: Parte General. 2ª ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2007. p. 127. TIEDEMANN, Leciones de Derecho penal econômico, p. 158 e ss. TERRADILLOS BASOCO, Juan. Derecho penal de la empresa. Madri: Trotta, 1995. p. 36.
6 Nesse sentido, vide: MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Derecho penal econômico, p. 127. Do mesmo autor, Derecho Penal Económico y de la Empresa, p. 399. E, especialmente, DOVAL PAIS, Antonio. Posibilidades y limites para la formulación de las normas penales: El caso de las leyes en blanco. Valencia: Tirant Lo Blabch, 1999. p. 55 e ss.
7 TIEDEMANN, Estudios Jurídicos, p. 895.
8 Nesse sentido, vide TIEDEMANN, Estudios Jurídicos, p. 895-896.
9 MAURACH, Reinhart; ZIPF, Hein. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. Trad. Jorge Bofill Genzsch e Enrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994. p. 663.
10 Nesse sentido, vide SUAY HERNÁNDEZ, Celia. Los elementos normativos y el error. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madri, Tomo XLIV, Fascículo I, p. 97-142, 1991. p. 30 e 44 e ss.
11 TIEDEMANN registra que “Sobre todo, en el Derecho penal accesorio, que en Alemania está actualmente conformado por casi 1000 leyes, se suscita la cuestión de si la existencia y contenido de las normas extrapenales que constituyen el objeto de referencia forman parte del tipo (penal) o pertencen a la prohibición (mandato)”. TIEDEMANN, Estudios Jurídicos, p. 896.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

DIREITO PENAL, EVASÃO DE DIVISAS E O CHAPÉU DE GEISSLER.

Na luta pelos domínios de Uri, um bucólico cantão austríaco, o tirano Hermann Gessler – sequioso por demonstrar seu poder – obrigara a todos quanto por lá passassem a saudar um esgarçado chapéu que pendia em uma haste. Soldados asseguravam que a ordem fosse prontamente cumprida; e ao menor sinal de renitência submetiam os desavisados a pesados grilhões. Heroicamente, Wilhelm Tell não se dobrou à esdrúxula imposição, restando condenado a manejar uma balestra contra a cabeça do próprio filho. Eis o mito impregnado nas tradições germânicas, e difundido mundialmente...
Por vezes, o Estado atua como esses soldados de Gessler. Tutela, com a violência da pena criminal, a observância de imposições absolutamente despropositadas e inúteis; visando a mera demonstração da sua potestade... Poder pelo poder; força pela simples força!
Não vem ao caso discutir o conhecido apotegma de Blaise Pascal: ‘o Direito sem a força é impotência; mas a força sem o direito é tirania’, questão de resto sondada profundamente por Jacques Derrida (A força da Lei, Martins Fontes). Aqui, fico apenas com o marcante exemplo do direito penal cambiário, cujos preceitos têm censurado - com a restrição da liberdade de locomoção e com todas as suas mazelas - o descumprimento de imposições semelhantes àquela do cantão de Uri: a simples recusa de se dobrar o joelho para o chapéu do rei...
Por etapas: na sua origem, a questão está intimamente associada à chamada ‘norma monetária’. Conquanto a redação prístina do Código Comercial de 1.850 e do Código Civil de 1.916 houvesse permitido que os pactuantes escolhessem as próprias moedas a serem empregadas para a liquidação de seus contratos, é fato que – desde 1.920 – o Estado brasileiro tem proibido a celebração de acordos destinados a empregar moeda estrangeira em solo brasileiro, como meio corriqueiro de pagamento (atualmente, é o que dispõe a Lei n. 10.192/01).
Os exportadores – ao receberem dólares no exterior – não os poderão empregar, em solo brasileiro, para pagamento de seus alugueres; de seus empregados; de suas despesas, enfim. Os importadores tampouco poderão pagar seus fornecedores internacionais com a moeda brasileira, ainda não considerada ‘dinheiro forte’ e, portanto, recusada além das nossas fronteiras, em regra.
Sob esse quadro, a moeda estrangeira torna-se uma mercadoria, suscetível de precificação, disputada pelas pessoas. Seu preço submete-se, tanto por isso, à lei da oferta e procura, ficando condicionado pelas expectativas dos agentes do Mercado. Em boa lógica, quanto maior o volume de dólares em um dado país, menor será o seu valor (quando confrontado com a moeda nacional), e vice-versa, salvo alguma anomalia do mercado.
O problema todo é que, com o Tratado de Bretton Woods – celebrado em 1.944, em New Hampshire, EUA (responsável pela criação do FMI) – os países estipulantes obrigaram-se a tabelar suas moedas frente ao dólar. Vale dizer: a manter uma tarifa constante da moeda própria, quando comparada com o dinheiro estadunidense. Por conseqüência, ao que interessa, a República Federativa do Brasil obrigou-se, então, a controlar o volume de divisas na posse de bancos e de outros agentes econômicos brasileiros.
E como conseguiria isso? Apenas mediante o monopólio estatal. O Estado obrigava-se a adquirir todas as divisas ofertadas (constrangendo os exportadores a repassar-lhe os dólares pagos, pelos adquirentes, no
exterior); e a fornecer as divisas demandadas (repassando dólares para os importadores, p.ex.). Dado que o Estado não fabricava (e ainda não fabrica, ao que se saiba) dólares, a solução era a restrição draconiana do fornecimento de divisas para viagens; cirurgias no exterior; para a freqüência a algum curso internacional, etc. Àquela época, o Estado brasileiro tinha uma resposta padrão: este mês o senhor não poderá viajar para a Europa, eis que as divisas serão destinadas prioritariamente para a aquisição de petróleo e demais insumos da indústria de base.
Cediço, todavia, que esse monopólio criou espaço para mercados paralelos, destinados a satisfazer necessidades não atendidas suficientemente pelo Estado. Na sua origem, o mercado clandestino decorria dessas restrições de acesso a divisas (vedação de cirurgias no exterior, reitero), alimentado por exportadores revoltados com a depreciação imposta pelo Estado para os seus dólares (eis que, no paralelo, conseguiriam preço muito superior àquele tabelado). A grosso modo, cuidava-se de subsídio público para determinadas atividades (p.ex., cultura cafeeira), carreando-se o custo para os importadores e outros agentes de mercado, conforme a estação.
Sob tal modelo econômico, o Estado impunha licenças prévias para as transferências de divisas para o exterior, fundadas em um exame de conveniência e oportunidade, absolutamente discricionário, com pontuais exceções (p.ex., direito subjetivo à remessa, pelas subsidiárias de empresas internacionais, de lucros e de juros). Destaco: tratava-se de uma análise ao talante da autoridade administrativa de plantão, quem poderia simplesmente indeferir a remessa por entender que, naquele mês, a transferência ameaçaria comprometer as ‘linhas de crédito internacionais’.
Esse o contexto econômico em que a Lei n. 7.492, de 1.986, foi cogitada. Seu artigo 22 tutelava, na origem, esse monopólio estatal; a preservação do volume de divisas em circulação no país. Estava impregnada do pressuposto de que a ocultação de dólares no exterior seria crime lesapátria, a demandar a mais gravosa punição, porquanto comprometedora do modelo fundado em uma concepção autoritária de Estado e no centralismo econômico.
Deixo de examinar tópico por tópico cada texto de lei elaborado nesse período. Cumpre apenas enfatizar que esse quadro mudou; e mudou substancialmente, sem que as normas penais tenham sido atualizadas. Os preceitos penais tutelam obrigações muitas vezes despropositadas, irracionais, quando não meros caprichos.
O monopólio começou a ruir com a criação do Mercado Flutuante, em 1.988 (dólar turismo), permitindo aos interessados a compra de dólares – até certo limite (US$ 4.000,00) – junto a agências de turismo. Inicialmente, permitiu-se a alimentação daquele novo mercado com dólares advindos do mercado paralelo (eis que se dispensou a identificação do vendedor de dólares para casas de câmbio, por alguns meses – Resolução n. 1.552/88, CMN).
Seguiu-se a criação do chamado ‘dólar comercial’ (Resolução n. 1.690/90, CMN) e – indo direto ao ponto – a cabal flexibilização do mercado de câmbio com a criação das chamadas CC-5, do tipo ‘3’ (de instituições financeiras estrangeiras), meio empregado pelo BACEN para assegurar confiança nos agentes econômicos internacionais.
A Carta Circular n. 05, de 1.969, previa apenas duas espécies de contas CC-5: as de ‘sobra’ de câmbio e as residuais (‘outras origens’). Àquela época, caso algum estrangeiro houvesse trazido consigo – ingressando no
Brasil – US$ 100.000,00 e aqui gasto, em cruzeiros, o equivalente a US$ 60.000,00, poderia abrir (mesmo sem CPF) uma conta corrente mantida em solo nacional e, ato contínuo, depositar o sobejo (ainda em cruzeiros) – equivalente a US$ 40.000,00 – e fechar câmbio e obter, no exterior, divisas correspondentes. Isso tudo sem a necessidade de prévia aquiescência e controle pela autoridade bancária central, ao contrário do que ocorria com as demais operações. Essa era a sistemática da CC-5 do tipo ‘1’.
Situação distinta ocorria com as CC-5 do tipo ‘2’ (outras origens), eis que destinadas ao pagamento, em solo brasileiro, de bolsistas estrangeiros. Aquela conta já não permitiria a transferência para o exterior, salvo quando concedida prévia licença pelo BACEN (análise de oportunidade e conveniência). Vale dizer: a conta de ‘outras origens’ não permitia a remessa sem que, antes, fosse concedida licença pelo BACEN.
Mas aquele quadro, constituído em 1.969, foi modificado com a já referida criação do mercado flutuante e do ‘dólar comercial’ (em que se permitiu a definição das taxas pelos próprios agentes do mercado). Em 1.992, com a Circular n. 2.252, o BACEN criou nova espécie de conta de não domiciliados – i.e., a chamada ‘tipo 3, de instituições estrangeiras’ – autorizando que Bancos estrangeiros captassem recursos em solo nacional, e - mesmo sem o prévio exame do BACEN, quanto a cada uma das operações – que fechasse câmbio e liberasse recursos correspondentes, no exterior.
Seguiram-se as Circulares n. 2.242/92 e n. 2.677/92, do BACEN, dispondo sobre a identificação dos remetentes e dos beneficiários, questão discutida em inúmeros processos judiciais. Mantiveram, porém, esse norte: o de que tais contas permitiriam a disponibilização de divisas no exterior, a favor dos depositantes, sem prévio exame do BACEN, quanto a cada uma das operações. Importa dizer: consagrou a concepção de que a constituição de disponibilidades financeiras no exterior seria um verdadeiro direito subjetivo individual, não mais condicionado a licenças prévias.
As chamadas ‘transferências internacionais em cruzeiros’ (depois, apelidadas de T.I.R. – transferências internacionais em reais) deixaram de estar condicionadas, pois, à análise de oportunidade e conveniência, pelas autoridades administrativas. Buscava-se, com isso, assegurar aos investidores internacionais a promessa de fácil retorno. Como diz Garófalo Filho, ‘... ao contrário dos pássaros, o dinheiro não ingressa onde há gaiolas’ . Logo, o Plano Real – fundado na captação internacional de recursos – deve muito da sua performance àquelas regras, ainda que aparentemente ilegais (eis que ofensivas às regras dos arts. 18 da Lei n. 4.595/64 e 52, ADCT, porquanto permitiam que bancos estrangeiros atuassem no Brasil sem prévio Decreto Presidencial).
Ora, naquele período – ao que se infere das suas circulares - o BACEN estava muito mais preocupado com a flexibilização do câmbio do que, propriamente, com qualquer política de compliance; com a suposta identificação dos remetentes e beneficiários. Explico.
Segundo a Circular n. 2.242/92 (art. 2º, inc. III) o interessado em constituir disponibilidades financeiras no exterior, via CC-5, deveria tomar a iniciativa de declarar, junto ao Banco interveniente, a natureza da operação; cabendo ao Banco depositário (i.e., mantenedor da conta corrente ‘normal’) a identificação do remetente e do destinatário. Como fazê-lo, se as contas CC-5 eram em tudo idênticas às demais? Se os controles analíticos previstos na Circular 2.259/92 não haviam sido implantados? Isto sem considerar que, naquele período, não havia um sistema informático como o atual.
Já a Circular n. 2.677/96 – já sob a égide da Lei n. 9.069/95 (art. 65) – corrigiu pontuais defeitos do diploma anterior. Obrigou, então, aos bancos mantenedores das contas CC-5 a identificação dos remetentes e
dos destinatários de recursos (art. 8º). E, pela suposta fraude contra aludida regra, muitos têm sido submetidos à argüição penal, acusados da prática de evasão de divisas (art. 22, Lei n. 7.492).
É gritante a impropriedade – para fins penais - do art. 1º, inc. II da Circular n. 2.242/92 (renovado no art. 7º, inc. II, da Circular n. 2.677/96, BACEN) quando pretende definir o conceito de ‘saída de divisas’. Cuidava-se de ficção destinada a justificar a captação, em solo brasileiro, de recursos por bancos estrangeiros sem prévio decreto presidencial. Segundo aquela Circular, a captação de recursos junto a uma CC-5 do tipo ‘2’ (de casas de câmbio paraguaias, p.ex.) seria o mesmo que captação de recursos no exterior. Por via de conseqüência, burlava-se – por vias oblíquas – a vedação do art. 18 da Lei n. 4.595 e do art. 52, ADCT já referidos acima.
Circular não pode pretender deturpar os conceitos veiculados na Lei Criminal, sob pena de agressão ao art. 5º, inc. XXXIX, CF. Do contrário, não tarda e teremos ‘portarias dicionários’ definindo o conceito de morte; de lesão; de dano, de modo a ampliar as cominações penais previstas nos arts. 121; 129; 163, CP, etc.
D’outro tanto, desde a flexibilização do Mercado de Câmbio, não há mais interesse na preservação do volume de divisas em circulação, eis que rompido o regime de monopólio. O próprio Estado, através do BACEN, reconheceu, ainda que tardiamente – como verdadeira prerrogativa individual – a constituição de disponibilidades financeiras no exterior. Até que enfim temos um quadro normativo tendente a dar cumprimento à garantia do art. 5º, inc. XV, da Constituição de 1.988 (já presente, por sinal, nas anteriores).
Atualmente, aquela norma do art. 22 da Lei n. 7.492 somente guarda sentido, caso orientada à tutela do controle informacional, pelo Estado, de modo a planejar eventual intervenção (via Dirty floating – i.e., retirada ou lançamento de divisas do mercado, de modo a influenciar episodicamente as taxas de câmbio). Questão por sinal já solucionada pelo Tribunal de Justiça da União Européia, com o conhecido caso ‘Aldo Bordessa’, com fulcro na diretiva 361/88 (decisão de 23 de fevereiro de 1.995).
Mas e o chapéu de Gessler?
Partindo da premissa de que, atualmente, o art. 22 da Lei n. 7.492 somente se justifica diante do interesse no controle de tais informações de câmbio, são possíveis duas conclusões: (a) a primeira, a de que – para tal fim – interessa ao Estado apenas o controle estatístico quanto ao volume de disponibilidades constituídas no exterior (a impropriamente denominada de ‘transferência internacional’, eis que as divisas já estão no exterior, em tal caso); (b) a segunda, a de que aludido controle também pode se prestar para a prevenção da lavagem de dinheiro (questão submetida, todavia, à lei própria, n. 9.613/98, com requisitos específicos).
E ainda que se suponha que a Lei Penal – para fins cambiários – nesse novo contexto de abertura econômica teria realmente interesse na cabal identificação dos remetentes e dos beneficiários, em tais transações, é fato que – em verdadeira aporia – o Estado (conquanto supostamente esforçado em tal identificação, art. 8º da circular 2.677) dispensou os bancos de cobrarem qualquer lastro documental (art. 10, §1º, da aludida circular).
Àquela época (1.996/1.997), a República Federativa do Brasil – pelo Poder Executivo - não preconizou qualquer banco de dados; qualquer sistema de filtro de informações; qualquer mecanismo de crítica de CPF’s fraudulentos; qualquer mecanismo de compartilhamento de informações com a Secretaria da Receita Federal. Limitou-se a exigir a identificação de remetentes e de destinatários, nada mais!
A norma é despropositada, quando compreendida em toda a sua amplitude, portanto. Exigiam-se dados (nomes dos remetentes e dos beneficiários) sem que fossem empregados para qualquer fim útil. Nada – absolutamente nada! – seria empreendido com tais dados (exigidos pelo art. 8º), dado que não confrontados com documentos; dado que não confrontados com a situação patrimonial de cada remetente ou beneficiário. Exigiam-se, dos bancos mantenedores nas contas CC-5 (já sob a Circular 2.677) a identificação dos envolvidos em tais operações; sem que – todavia – se exigisse o mais importante: a conferência de documentos, a serem lançados no dossiê reportado ao final do art. 8º daquele mesmo diploma.
Mal comparando, a imposição de pena, fundada no eventual descumprimento daquela regra do art. 8º, da Circular 2.677, pode se aproximar da figura daquele professor, supostamente austero que – exige trabalhos árduos dos seus alunos – mas que jamais lerá. Depois, tendo jogado fora tais provas sem lhe dedicar qualquer atenção, venha a sancionar quem não as tenha entregado. Para que sanção, se os dados eram inúteis? Por sinal, questão que encontra expressa resposta legal, nos termos do art. 17 do Código Penal brasileiro (que reconhece que não há crime sem lesão significativa a bens jurídicos dignos de tutela), como já reconheceu o Eg. TRF da 4ª Rg. ao julgar o caso de autos n. 2005.70.00.0003484-8 (rel. Des. Fed. Tadaaqui Hirose, DJE de 27.08.2008).
Urge que o chapéu de Gessler seja retirado do pedestal, e que não se punam mais comportamentos em si inidôneos para lesar qualquer bem jurídico; sobremodo quando eventual lesão decorre muito mais da própria inoperância legislativa ou mesmo administrativa do Estado.

A DEFESA DE PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Em trecho muito sugestivo de A origem da tragédia, Nietzsche narra que os gregos conheceram e sentiram as angústias e os horrores da existência, e que, para poderem viver, levados pela mais imperiosa das necessidades, tiveram de “gerar em sonho o mundo brilhante dos deuses olímpicos”.1 Aproveitando, em parte, essa alegoria, pode-se afirmar que a criminalidade violenta ou astuciosa dos dias correntes é enfrentada com a invocação de antigos e novos santos das procissões religiosas; com os movimentos humanitários que pregam paz e amor; com os símbolos que se remetem à divindade; com o discurso político do crime a exigir o retorno e o recrudescimento das penas corporais; com a declaração de guerra a determinados guetos e setores sociais; com a sacralização da doutrina do direito penal do inimigo; com a multiplicação de normas incriminadoras que atende às exigências de um direito penal de ocasião.
Na administração da justiça penal, os seus operadores sofrem a amarga experiência da inflação legislativa, responsável por um tipo de direito penal do terror que, ao contrário de seu modelo antigo, não se caracteriza pelas intervenções na consciência e na alma das pessoas, e passa a levar à frente as bandeiras do preconceito ideológico e da intolerância social. Ele se destaca, atualmente, em duas perspectivas bem definidas: a massificação da responsabilidade criminal e a erosão do sistema positivo. A primeira, fomenta o justiçamento social determinado pelos padrões sensacionalistas da mídia que subverte o princípio da presunção de inocência e alimenta a fogueira da suspeita, que é a justiça das paixões, consagrando a responsabilidade objetiva; a segunda, anarquiza os meios e os métodos de controle da violência e da criminalidade e revela a ausência de uma Política Criminal definida e permanente nos planos dos governos federal, estadual e municipal.
No ano de 1991, precisamente no dia 25 de março, a Folha de São Paulo, na seção “Tendências e Debates”, publicou artigo de minha autoria, “Direito penal do terror”, no qual foi denunciada a edição de novas leis que, além de provocar um sentimento de opressão ilegítima, atentavam contra a segurança jurídica que devem guardar as normas penais. O título do texto inspirou o Procurador da República, Garcez Ramos, a elaborar de um valioso estudo, denominado: A inconstitucionalidade do ‘Direito Penal do Terror’. Uma das conclusões apresentadas pelo Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, foi esta: “. Os princípios penais explicitados na Constituição e os inferíveis a partir de sua interpretação sistemática são juridicamente eficazes e a violação dos mesmos por parte da legislação infra-constitucional importará na inconstitucionalidade da respectiva lei”.2
O nosso país conheceu somente duas consolidações da legislação penal: a procedida pelo esforço beneditino do Desembargador Vicente Piragibe (1932) e a realizada pelo Código Penal de 1940. Este diploma, no art. 360, resume, como objeto de legislação especial, somente os crimes a) contra a existência, a segurança e a integridade do Estado; b) a guarda e o emprego da economia popular; c) de imprensa; d) de falência; e) de
responsabilidade do Presidente da República e governadores ou interventores; f) militares. Falhou a tentativa do Código Penal de 1969 (Dec.-lei nº 1.004, de 21.10), reformado pela Lei nº 6.016, de 31.12.1973, que, após indicar dez espécies de ilícito que comporiam a legislação extravagante (crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social etc.), expressamente reconheceu a impossibilidade de consolidar as leis especiais já existentes em grande número, com a seguinte expressão: “bem como os previstos em outras leis e não incorporados a este Código (...)” (art. 401).3
O fenômeno, porém, não é exclusivamente brasileiro e nem é novo. O expansionismo penal já era denunciado no Século XIX, por Francesco Carrara, Franz von Liszt e Reinhart Franck, como observa Luiz Luisi em minucioso levantamento.4 Em nosso país, a proteção constitucional de novos ramos jurídicos, a crescente sensibilização da opinião pública, a necessidade de amparar interesses resultantes do desenvolvimento econômico e os riscos gerados pelas novas tecnologias são alguns dos fatores determinantes da explosão normativa, cujos pedaços dos edifícios clássicos criaram microssistemas em função de interesses ou de pessoas. Os penalistas contemporâneos da América Latina têm denunciado o mesmo problema, agravado com o endurecimento do direito penal nuclear, “fenômeno este que se vincula com el mencionado resurgimiento del punitivismo”.5 A discussão atual sobre o tema da legitimidade da pena criminal assume especial relevo com a massificação de normas incriminadoras, gerando o chamado direito penal simbólico. A propósito, García-Pablos de Molina: “El problema se plantea cuando se utiliza deliberadamente el Derecho Penal para producir un mero efecto simbólico en la opinión publica, un impacto psicosocial, tranquilizador en el ciudadano, y no para proteger con eficacia los bienes jurídicos fundamentales para una convivencia”.6
A hipercriminalização de condutas de menor ou de insignificante relevo ofensivo, tem sido tarefa rotineira do Congresso Nacional, em violação manifesta ao princípio da intervenção mínima. Já foi dito, com muita propriedade, que o Direito Penal é o “soldado de reserva” para combater o crime quando falharem outros meios. “Somente quando a sanção civil se apresenta ineficaz para a reintegração da ordem jurídica, é que surge a necessidade da enérgica sanção penal. (...) Se um fato ilícito, hostil a um interesse individual ou coletivo, pode ser convenientemente reprimido com as sanções civis, não há motivo para a reação penal”.7 Meios de comunicação de massa, instrumentalização do Direito Penal e a técnica legislativa, compõem a tríade que Montes Flores denuncia, no seu artigo como “la demagogia del legislador penal”.8
Creio que somente uma emenda constitucional, para determinar que as matérias atinentes aos crimes e às penas, às hipóteses de prisão e de recursos, sejam objeto de lei complementar, que exige maioria absoluta para a sua aprovação (CF, art. 69), poderá colocar a dignidade da ciência penal a salvo da torre de babel normativa, que a expõe ao serviço da intolerância e do poder arbitrário.
Além do Direito Civil, também o Direito Administrativo e o Direito Tributário contêm uma reserva de sanções que permitem reprimir e prevenir suficientemente variadas formas de ilicitude que estão previstas no Código Penal e em leis especiais. A propósito, a Seção I, do XIV Congresso Internacional de Direito Penal (Viena, 1989), tratou dos problemas teóricos e práticos relativos à despenalização de infrações de menor relevo social e à transferência delas, do domínio do Direito Penal tradicional, para o do Direito Administrativo Penal.9 Essa subsidiariedade do Direito Penal tem sido afirmada por inúmeros autores, a exemplo do imortal Jiménez de Asúa, ao sustentar que “no existe un injusto penal, outro civil, outro administrativo, etc. (…). El Derecho Penal garantiza, pero no crea las normas”.10 No ordenamento legal brasileiro, a subsidiariedade deve ser observada especialmente nas infrações penais econômicas, contra a ordem tributária e contra a economia popular.
Como princípios fundamentais de Direito Penal, são reconhecidos (além da legalidade): a humanidade das sanções, a presunção de inocência, a anterioridade da lei penal, a intervenção mínima, a culpabilidade, a aplicação da lei mais favorável, a proteção dos bens jurídicos, a personalidade, a individualização, a proporcionalidade, a necessidade e a utilidade.
O INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO, fiel à sua concepção basilar de defender os princípios fundamentais de Direito Penal à luz da Constituição e dos valores democráticos que a promovem, cumprirá esse ideal através de um movimento crítico racional, com diversas atividades acadêmicas, edição de textos científicos, divulgação da jurisprudência garantista e publicação periódica da vida e da obra dos pensadores antigos e modernos que, embora sem a auréola da divindade, praticam, no mundo terreno dos dramas e das tragédias da condição humana, as mais corajosas e fecundas lições de resistência contra o abuso de autoridade e o desvio de poder.
Afinal, e lembrando as sábias palavras de advertência de Roxin, “un Estado de Derecho debe proteger al individuo no solo mediante el Derecho penal, sino tambíen del Derecho penal. Es decir, que el ordenamiento jurídico no sólo ha de disponer de métodos y medios adecuados para la prevención del delito, sino que también ha de imponer límites al empleo de la potestad punitiva, para que el ciudadano no quede desprotegido y a merced de una intervención arbitraria o excesiva del ‘Estado Leviatán’”.11


1 NIETZSCHE, Frederico. A origem da tragédia. 2ª ed., trad. De Álvaro Ribeiro, Lisboa: Guimarães Editores, 1972, p. 47.
2 GARCEZ RAMOS, João Gualberto. Ob.cit., Curitiba: Juruá Editora, p. 91 (os destaques em itálico são meus).
3 A Lei nº 6.016/73 foi revogada pela Lei nº 6.578, de 11.10.1978, sem nunca ter entrado em vigor.
4 Os princípios constitucionais penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, p. 28e s.
5 CESANO, José Daniel. La política criminal y la emergência (Entre el simbolismo y el resurgimento punitivo), Córdoba: Editorial Mediterránea, 2004, p. 26/27.
6 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho Penal, Introducción, Madrid: Faculdad de Derecho de la Universidad Complutense, Madrid, 2000, p. 97. (Os destaques em itálico são meus).
7 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, vol. VII, p. 178. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 10ª ed., Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005, p. 87.
8 MONTES FLORES, Efrain. Texto publicado em Dogmática penal del tercero milênio. Libro homenaje a los professores Eugenio Raul Zaffaroni y Klaus Tiedmann, Lima (Perú): ARA Editores, E.I.R.L, p. 385 e s.
9Revue Internationale de Droit Penal, Toulouse: ed. AIDP – Eres, 61º année – nouvelle série, 1 e 2 trimestre de 1990, p. 87.
10 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. La ley y el delito, Caracas: Editorial “Andrés Bello”, 1945, p. 19. Essa conclusão está reafirmada mais detalhadamente em seu Tratado de Derecho Penal, 3ª ed., Buenos Aires: Editorial Losada, S.A., 1964, tomo I, p. 40 e s.
11 ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General, traducción de la 2ª edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Madrid (España): Civitas Ediciones, 1997, tomo I, § 5, p. 137 (os destaques em itálico são meus).

René Ariel Dotti
Presidente Honorário do IBDPE

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

É POSSÍVEL A EXISTÊNCIA DE BENS JURÍDICOS COLETIVOS DE NATUREZA ECONÔMICA ?

Da não distinção entre bens coletivos e direitos coletivos no âmbito do Direito penal econômico surge o pensamento no sentido de que existem bens jurídicos coletivos de natureza econômica que podem ser desfrutados por todos, sem que o consumo de um impeça o consumo de outro●. Todavia, conforme se sabe, todo bem econômico é por natureza um bem escasso, o que significa que a única forma de satisfazer, de forma mínima, as necessidades de todos por bens econômicos é fracionando esses bens em partes, tendo em vista que, se assim não for, algumas pessoas necessariamente ficarão excluídas do uso desses bens.
Sendo assim, os critérios da não rivalidade no consumo, da não-distributividade, e da não exclusão no uso1 são incompatíveis com a natureza escassa dos bens econômicos, embora não o sejam com relação aos direitos coletivos sobre bens econômicos. Com efeito, ter um Direito não significa receber o objeto ou a prestação a qual se tem direito, não devendo estranhar, portanto, que alguns dos autores que defendem a legitimação da intervenção penal na proteção dos bens coletivos de natureza econômica enfatizem o “discurso formal dos direitos”, sem atribuir a relevância adequada à questão de como bens supostamente indivisíveis como a água e a produção econômica, por exemplo, serão efetivamente distribuídos para todos os “portadores dos direitos” indivisíveis e não excludentes. Destarte, corre-se o risco de que o “discurso dos direitos” se sobressaia à discussão de não somenos importância em torno de como serão divididos os “novos bens econômicos”2 na chamada “sociedade do risco”.
Entretanto, o estudioso do direito penal econômico não pode ignorar o aspecto ontológico e normativo dos bens coletivos de natureza econômica, não podendo se ater, tal qual acontece no campo processual, ao âmbito de uma discussão normativa focada em aspectos puramente deônticos. Em outras palavras, aos penalistas não é mais importante saber quem pode entrar com uma ação civil pública em defesa da ordem econômica do que responder, por exemplo, o que distingue um objeto chamado de bem coletivo de um bem individual que faz com que aquele deva receber uma proteção diferenciada. Ora, se não há diferença ontológica, então não há porque falar em crimes de perigo ou acumulação, ressalvando-se o caso de que se acredite que o perigo jurídico possa ser algum tipo de perigo diferenciado, existente apenas na cabeça de juristas com o poder de alterar a realidade e o comportamento humano a partir de um “passe de mágica”.
Nesse sentido, vem sendo destacado por alguns doutrinadores que antes de se posicionar acerca da legitimidade ou não da intervenção penal em certos âmbitos da vida econômica, deve-se conhecer e delimitar os objetos aos quais se pretende proteger, uma vez que sem o conhecimento do objeto da ação não será possível normatizá-lo de modo a definir o bem jurídico, conforme bem ressalta SCHULENBURG:
Hay que preguntarse sobre qué objeto se produce um resultado, o bien qué objeto debe ser lesionado o expuesto a um peligro concreto o general. Así, a este respecto, entra em consideracíon tanto el objeto de la accíon afectado inmediatamente por el hecho punible, como tambíen aquel objeto que encarna el bien jurídico protegido, que no tiene por qué coincidir necesariamente com el objeto de lá accíon.”3
Com base nessas premissas, tem-se procurado encontrar critérios para se definir que tipo de objeto realmente pode ser considerado um bem coletivo, a fim de denunciar a existência de falsos bens coletivos que não passariam de uma soma de interesses individuais4. Todavia, os critérios que têm gozado de aceitação majoritária são o da indivisibilidade, não distributividade, e o da não rivalidade no consumo. Entretanto, como a ciência jurídica não pode se contentar com proposições dogmáticas e argumentos de autoridade, impende-se perguntar: qual a base epistemológica que fundamenta esses critérios? Embora alguns penalistas que utilizam esses critérios, sobretudo HEFENDHEL mencionem um trabalho do jusfilósofo ROBERT ALEXY5, a elaboração dos critérios da não-exclusão no uso, não-rivalidade no consumo, e não-distributividade é atribuída ao economista PAUL SAMUELSON que em 1954 procurou oferecer uma análise formal dos bens públicos6.
Um dos objetivos de SAMUELSON ao ter elaborado os critérios da não-exclusão, não-distributividade, e indivisibilidade foi o de separar aqueles bens que poderiam ser fornecidos pelo setor privado de outros que necessariamente deveriam ser oferecidos pelo Estado, tendo em vista que a satisfação desses critérios por um bem implicaria necessariamente a existência de externalidades7.
As externalidades, conforme se sabe, sejam elas positivas ou negativas são consideradas evidências de que um mercado sem intervenção estatal não é eficiente (no sentido de Pareto) na alocação dos recursos, uma vez que se parte da premissa de que esses custos ou benefícios externos não seriam levados em conta na formação do preço em um mercado livre. Assim, com base nesses fundamentos, advoga-se a necessidade de intervenção do Estado, a fim de que este possa criar mecanismos capazes de “internalizar as externalidades”, por meio da criação de condições para que o mercado se desenvolva de forma eficiente.
Por exemplo, como ninguém pode ser excluído do uso de bens públicos, alguns teóricos sustentam que sem um Estado para impor sanções aos sonegadores, os cidadãos, na esperança de “pegar uma carona” (problema do free rider) na contribuição dos outros, deixariam de contribuir, uma vez que do ponto de vista racional o melhor é receber benefícios a custo zero. .
Contudo, o problema com esse tipo de “racionalidade” é que se todos agirem assim não existirá “veículo” para se pegar carona, tendo em vista que um agente egoísta só pode se beneficiar de externalidades
positivas se existirem agentes altruístas que se disponham a arcar os custos. Essa situação foi chamada por OLSON de dilema da ação coletiva8
Com base nessa argumentação, defende-se que a existência de sanções tributárias seria uma forma de “internalizar as externalidades”, criando-se uma espécie de “altruísmo artificial” que ao eliminar o dilema da ação coletiva viabilizaria a existência de grandes empreendimentos, os quais dificilmente poderiam ser realizados com base exclusivamente no instinto de cooperação e solidariedade dos indivíduos. Entretanto, os defensores dessas políticas estão cientes de que se o custo de “pegar carona” for menor do que o de contribuir, os agentes continuarão a sonegar os impostos, sendo as sanções penais, por conseguinte, uma alternativa para impedir que as medidas administrativas sejam ineficazes como conseqüência de análises de custo de oportunidade realizadas pelos agentes.
Todas essas breves considerações são importantes, pois chamam a atenção para o fato de que a transposição para o Direito penal dos critérios mencionados demanda maiores reflexões, uma vez que quando SAMUELSON os formulou, baseou-se em um contexto normativo específico, tomando-o como uma questão a-histórica. Por esse motivo não tardou para que outros economistas logo apontassem uma série de erros em sua metodologia, uma vez que muitos dos supostos bens considerados por SAMUELSON como indivisíveis e públicos, não passaram, em outros períodos históricos, de simples bens individuais9.
Assim, conclui-se esta sucinta análise com o sentimento de que é extremamente louvável essa nova discussão em torno de se definir os aspectos ontológicos e normativos dos bens coletivos; contudo, o debate parece que está apenas no começo, impendendo-se um aprofundamento das pesquisas sobre tal intrincada questão que tem a ver não apenas com Direito penal, mas com a própria função a ser desempenhada pelo Direito na contemporaneidade.

● Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa desenvolvido com o apoio da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular (FUNADESP), e do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA), sob orientação do Professor Fábio André Guaragni. Sou muito grato também ao Professor Robson A. Galvão da Silva pelo constante apoio e ensino.
1 De acordo com HEFENDHEL, um bem satisfará respectivamente os três critérios mencionados se o consumo desse bem por parte de um indivíduo não restringe o consumo de outro; se for real, conceitual, e juridicamente impossível dividir esse bem em partes e atribuir uma porção a cada um e, por fim, se ninguém puder ser excluído de seu uso. Todavia, a inaplicabilidade desses critérios é notória quando se está diante de bens de natureza econômica, podendo-se citar a atividade tributária como exemplo. Com efeito, todos sabem que a arrecadação e aplicação dos tributos é proporcional ao nível de atividade da economia, não existindo fundamento ontológico para supor que bens que antes eram escassos e, portanto, divisíveis, passariam a existir de forma abundante pelo simples motivo de terem passado das mãos do particular para o Estado. Ora, se assim o fosse, bastariam emissões monetárias para acabar com a fome no mundo!
2As aspas são porque a água, por exemplo, era um bem econômico muito antes do homem descobrir seu caráter escasso.
3SCHULENBURG, Johanna. Relaciones Dogmáticas entre bien jurídico, estructura del delito e imputacíon objetiva. In: HEFENDHEL, Holand. La teoria del bien jurídico¿ Fundamento de legitimacíon del derecho penal o juego de abalorios dogmático?Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales S.A, 2007, p. 349-362, p. 353.
4Nesse sentido, destaca-se a posição de HEFENDHEL que considera ser a saúde pública um dos exemplos desses falsos bens coletivos que precisam ser desmascarados: HEFENDEHL, Roland. Debe ocuparse el Derecho Penal de riesgos futuros? Bienes jurídicos colectivos y delitos de peligro abstrato, 2002. p.9
5ALEXY, Robert. “individuelle Recht und Kollektive Güter”, in: WEINBERGER. Internationales jahrbuch für Rechtsphilosophie und Gesetzgebung, Aktuelle Probleme der Demokratie”, Wien, 1989.p. 49,54. Vide a citação de: HEFENDEHL, Roland. Debe ocuparse el Derecho Penal de riesgos futuros? Bienes jurídicos colectivos y delitos de peligro abstrato, 2002. p.4
6SAMUELSON, Paul Anthony. The Review of Economics and Statistics, Vol. 36, No. 4, 1954, p. 387-389.
7 Externalidades em economia são os custos ou benefícios de uma atividade que transcendem o mercado específico no qual a mesma se desenvolve. Por exemplo, a poluição causada por uma empresa petrolífera é um custo mesmo para aquele que não obtém qualquer benefício pela exploração do petróleo.
8 Destaque-se que OLSON defendeu esse posicionamento com base no conceito de bens públicos desenvolvido SAMUELSON. Para uma visão mais aprofundada do dilema da ação coletiva ver: OLSON, Macur. A Lógica da Ação Coletiva. São Paulo: Edusp, 1999.
9 Embora tenham aparecido muitos trabalhos críticos com relação aos critérios desenvolvidos por SAMUELSON, o mais famoso é o do economista RONALD COASE que ganhou o prêmio Nobel em 1991. Normalmente, alegava-se, com base no pensamento de SAMUELSON que os faróis de navegação seriam típicos exemplos de bens públicos. Contudo, tais assertivas se baseavam em puras intuições a-históricas, o que restou comprovado quando COASE demonstrou que na Inglaterra do séc XIX os faróis eram privados e os navios tinham que pagar por seu uso quando chegassem ao porto. Com efeito, a constatação de COASE é perfeitamente adequada com a tese de que embora SAMUELSON tenha formulado seus critérios a partir de uma realidade normativa, muitos economistas, até hoje, entendem esses critérios como se fossem de natureza ontológica, o que, conforme se viu, não parece ser o caso. Para uma visão mais aprofundada Vide: COASE, Ronald, "The Lighthouse in Economics," The Journal of Law and Economics, 1974. p. 357-376.

Fernando dos Santos Lopes foi pesquisador da Funadesp e é sócio fundador do instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, atual segundo coordenador do site.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO E SUBSIDIARIEDADE

No momento em que se dá a público um novo veículo de discussão de um tema tão envolvente como o Direito penal econômico, parece oportuno apresentar linhas gerais que certamente serão verticalizadas ao longo das sucessivas edições deste periódico e trarão aos interessados neste campo do Direito penal, muito mais luzes do que as inquietações que se pretende aqui esboçar.
O campo de abrangência do Direito penal econômico hoje é muito mais amplo do que apenas matéria financeira, já que há um vasto contingente de áreas também alcançadas pela regulamentação jurídico-penal. Basta constatar a existência de crimes contra as relações de consumo, crimes contra o ambiente, crimes falimentares, crimes relacionados aos segredos industriais, à atividade publicitária e até mesmo à organização do trabalho. Isso sem falar, é claro, dos tradicionais crimes tributários e financeiros, agora vinculados estritamente ao branqueio de capitais.
Toda esta ampliação não é mais do que reflexo do processo de expansão do Direito penal, tão bem identificado por Silva Sánchez1. Esta realidade concreta deriva de uma postura tanto falaciosa quanto cínica de parte das instâncias de controle que deve, sempre que possível, ser posta à mostra. Este é o objetivo deste pequeno ensaio: colocar em evidência a fraude que alimenta o desmedido crescimento do Direito penal econômico, tomando por campo de provas justamente o seu cerne: o Direito penal tributário.
A questão fundamental que ronda o tema diz respeito à expansão do Direito penal. Esta deve ser reconhecida como um fato negativo, já que qualquer aumento de tipificação guarda direta proporção com o recorte das liberdades individuais e reflete até que ponto se está disposto a assumir tal recorte para que o Estado gestione o restante de tais liberdades. Quanto mais pedimos por Direito penal incriminador, mais estamos pedindo paradoxalmente pela diminuição de nossas liberdades, razão pela qual, o processo de expansão necessariamente culmina por revelar sua faceta tenebrosa.
Ocorre que o discurso de um Direito penal de um Estado social e democrático de direito vem tomando corpo e retirando as vendas de certeza que sempre tivemos ao buscar amparo no direito positivado, sem medir-lhe as conseqüências. Hoje, o pensamento a respeito das funções que cumpre o Direito penal nos conduz diretamente à análise de princípios que promovem a necessária filtragem do direito posto em busca de um equilíbrio.
É nesse cenário que cabe perguntar a respeito da relação entre o Direito penal tributário e o princípio de intervenção mínima, especialmente em sua vertente da subsidiariedade. A pergunta passa a ser: é realmente necessário um Direito penal tributário? Em que termos? Até que ponto o controle social no âmbito tributário efetivamente deve estar alocado para a instância penal?
Esta análise, evidentemente passa por uma escolha de perfil a respeito da missão do Direito penal. Adota-se aqui a idéia de controle social do intolerável a partir da proteção seletiva de bens jurídicos 2.
Partindo de que o Direito penal deve ocupar-se somente dos ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes para o desenvolvimento do indivíduo em sociedade, reservando para as demais instâncias de controle – jurídico ou não – todo o resto, parece necessário perquirir, no campo dos crimes tributários, se efetivamente as hipóteses reclamam a intervenção jurídico-penal.
Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, buscar saber o que protege a incriminação penal tributária, ou seja, qual é o bem jurídico protegido no chamado Direito penal tributário.
É claro que existe uma imensa gama de incriminações, algumas inclusive cujo desenho revela serem tipos penais complexos, vinculados a uma pluralidade de bens jurídicos, como é o caso do crime do art. 1º, inciso III da Lei 8.137/90, que inclui a supressão e a redução de tributo mediante uma falsificação, afetando o bem jurídico fé pública, além daquele específico relacionado com a supressão ou redução de tributo. Porém, existem também vários tipos penais constantes do rol dos crimes tributários em que a atividade criminosa diz respeito única e exclusivamente à falta de recolhimento de tributo, como é o caso do descaminho (art. 334 do Código Penal) ou mesmo a falta de recolhimento tributário (art. 2º, inciso II da Lei 8.137/90).
Nestes casos, em que a conduta se resume à falta de recolhimento de tributo, a doutrina tem discutido se o bem jurídico afligido seria a o patrimônio público ou o direito à arrecadação tributária. Tanto em um caso como em outro, porém, parece inarredável a falta de justificativa para a intervenção jurídico-penal quando cotejado com o princípio de intervenção mínima.
Vejamos. Se o bem jurídico for o patrimônio público, seria preciso que o valor em questão efetivamente inviabilizasse ou prejudicasse de modo relevante o desenvolvimento patrimonial do ente federativo vítima da sonegação para que se justificasse a intervenção jurídico-penal. Isto certamente reduziria a um mínimo as hipóteses em que efetivamente seria o caso de emprego do Direito penal. Não se trata de, em um exercício de lógica simplista limitar o quantum de sonegação ao quantum revelado como mínimo para o despertar do interesse persecutório administrativo. Não porque não o fato de não haver interesse administrativo certamente revela o desinteresse penal, mas a existência de interesse administrativo, contrario sensu, não implica em necessário interesse penal. A filtragem há de ser pelo princípio de intervenção mínima em seu enunciado concreto, ou seja, é preciso que haja efetivo interesse revelado pelo prejuízo ao desenvolvimento patrimonial do ente federativo afetado pela sonegação.
Se, ao contrário, o bem jurídico for considerado o direito à arrecadação tributária, em primeiro lugar haveria de se questionar a efetiva relevância deste bem jurídico, posto que o Estado não é portador de nenhum direito. Em uma conformação de Estado dentro de um modelo contratualista, temos que o Estado é formado por várias pessoas que cedem a um “ente” determinado, a parte de sua liberdade em prol de que o restante dela seja garantida por este mesmo “ente”. Isto revela então, que o “ente” Estado não é portador de nenhum direito, mas meramente gestor dos direitos de todos, para com quem ele tem, isto sim, deveres. Assim, não há que se falar em direito à arrecadação, mas sim de dever de arrecadação, justamente para que se possa prover as necessidades demandadas por aqueles que formaram o Estado.
É necessário ver, então, se o cumprimento deste dever é violado de tal forma que se inviabiliza o seu cumprimento. Só assim estará presente a justificação necessária para a intervenção penal, ou seja, para a intervenção em ultima ratio. Cumpre lembrar que, neste caso, estaríamos diante da hipótese de um dos chamados delitos de violação de um dever (Pflichtdelikte), ou seja, o criminoso violaria o dever de pagar o tributo, prejudicando o cumprimento, por parte do Estado, de seu próprio dever.
Aqui se chega à vertente da subsidiariedade: tanto em um caso quanto em outro, ou seja, qualquer que seja a identificação do bem jurídico que se dê, não basta que se reconheça a gravidade do ataque para o bem jurídico, nem somente a relevância qualitativa e quantitativa deste. É preciso ainda, que se demonstre que o socorro penal é necessário diante da ineficiência do suprimento da proteção a estes bens jurídicos, pela intervenção de outra instância de controle menos gravosa.
A comparação resulta evidente: no Direito penal tributário onde não há outro bem jurídico atingido (crimes essencialmente tributários e não crimes complexos) a seara administrativa concorre obrigatoriamente em todas as hipóteses de existência de delito. Entretanto, as diferenças são abissais. No âmbito administrativo-tributário, a autuação tem presunção de legitimidade, cumprindo ao contribuinte demonstrar que não deve; a discussão jurídica imprescinde de garantia do juízo quanto aos valores tributados; a discussão se trava dispensando o processo de conhecimento e ingressando diretamente na etapa da execução. No direito penal, ao contrário, ativa-se a presunção de não culpabilidade com múltiplas etapas recursais; somente a eventual condenação com trânsito em julgado pode, caso referido na sentença, determinar a perda dos bens ou produtos do crime como conseqüência acessória extra-penal; o processo prescinde de qualquer garantia econômica e se desenvolve em toda a sua etapa de conhecimento, para somente a partir da sentença condenatória com trânsito em julgado obter o título executivo.
A pergunta é elementar: por qual das vias se obtém uma melhor proteção do bem jurídico? Por qual das vias se garante o patrimônio público ou o direito/dever de arrecadação com maior eficácia.
A medida deve ser, obviamente, a dos interesses dos cidadãos que estão remotamente escondidos por detrás do simbólico bem jurídico coletivo anunciado em qualquer das interpretações. Assim, por qual das duas vias, eu e você, membros desta sociedade, podemos ver mais facilmente o Estado de posse dos valores tão necessários para prover as nossas necessidades?
Parece não haver qualquer dúvida. O Direito penal aqui simplesmente não tem papel algum. É um figurante simbólico, banalizado e desrespeitado, que não tem nenhuma efetividade nem responde a nenhuma necessidade. Por outra, é importante ter em mente que a obrigatória saída de cena do Direito penal não deixa, atrás de si um vácuo, mas sim uma missão importantíssima, para cujo cumprimento é chamado o Direito Administrativo.

1 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Expansión del Derecho penal. Madrid: Civitas, 1999.
2 Para detalhes a respeito, remeto a BUSATO, Paulo César e MONTES HUAPAYA, Sandro. Introdução ao Direito penal. Bases para um sistema penal democrático. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 158 e ss.

Por Paulo César Busato: Promotor de Justiça e professor de Direito Penal da UFPR e de outras instituições.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

DUAS FORMAS DE FAZER DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL

A imagem da dogmática jurídico-penal alemã que impera no mundo latino é, aproximadamente, a seguinte. Dois ou três grandes sistemáticos constróem seus imponentes edifícios teóricos. Estas teorias alcançam status de verdadeiros paradigmas, “ismos”, dominam o debate por uma geração inteira, até que venha uma nova geração a propor outros rumos. Haveria, assim, uma época jusracionalista, de Feuerbach, sucedida pelo pragmatismo de Mittermaier, que teria dado lugar ao Hegelianismo de Abegg, Köstlin e Berner, que seria sucedido pelo positivismo normativista de Binding, por sua vez suplantado pelo positivismo naturalista de Liszt e Beling, passando-se à época de Mezger e do seu neokantismo, à época de Welzel e Maurach, com o finalismo, e agora à época do funcionalismo de Roxin e de Jakobs. Estes autores cuidariam de grandes temas – para mencionar alguns que hoje estão em voga: “garantismo”, “funcionalismo”, “abolicionismo”, “princípio da legalidade”, “teoria da pena”, “ontologismo vs. normativismo”, “bem jurídico”, “conceito de ação”, “conceito de injusto”, “culpabilidade e prevenção”, “sociedade do risco”, “modernização do direito penal”, e, mais recentemente, “direito penal do inimigo”. Nós acompanhamos à distância, mas com vivo interesse, o desenrolar destes debates, e escrevemos um sem número de artigos em que nos posicionamos a respeito – como o torcedor que grita por sua equipe ao ver uma partida de futebol pela televisão. Admiramos aqueles dentre nós que dominam estas discussões e são capazes de mover-se por searas tamanhamente obscuras.
Pois bem, a tese que sustentarei nestas sucintas reflexões é a de que o modelo apresentado é, enquanto descrição do desenvolvimento da dogmática jurídico-penal, inexato, e, enquanto prescrição de como ela deveria ser cultivada, pernicioso.
O modelo é inexato, não pela óbvia simplificação que ele implica – todos sabem que há hoje mais penalistas alemães do que Roxin e Jakobs – mas por transmitir a impressão de que a ciência do direito penal evolui como uma ciência de grandes temas, e não de pequenos e prementes problemas. Tomemos, por ex., um dos grandes temas, talvez um dos maiores temas do direito penal: o princípio da legalidade. A discussão a seu respeito, reproduzida com maior ou menor exatidão em nossos manuais, percorreu esses duzentos anos desde Feuerbach animada por preocupações um tanto concretas. O que move Feuerbach a formular seu brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege e a inseri-lo no bojo de sua chamada teoria da coação psicológica (segundo a qual a finalidade da pena é intimidar a população através da ameaça de um castigo, o que deve ocorrer por meio de uma cominação legal), é o problema específico do então admitido direito dos juízes de mitigar a pena legalmente prevista (curioso que hoje se defenda algo similar entre nós). Forçados a trabalhar com uma legislação que continha várias penas atrozes, os juízes do fim do séc. XVIII viram uma saída na teoria de que as penas legalmente cominadas se referiam somente a casos paradigmáticos, em que o autor obrasse de modo plenamente culpável. Circunstâncias extraordinárias, ainda que não legalmente previstas,
justificariam uma pena extraordinária, tampouco legalmente prevista. É em primeiro lugar contra essa prática concreta que se insurge Feuerbach e sua teoria da coação psicológica.
Se continuarmos acompanhando a evolução do debate em torno deste princípio, veremos que havia sempre um fator um tanto concreto a dar vida ao debate. Por ex., na década de 30, quando se reaviva a discussão em torno da legalidade, o fator era a eminência e depois a efetivação da permissão de analogia pelo legislador nacional-socialista (1935). Na década de cinqüenta, a recém-promulgada Lei Fundamental fazia que se voltasse a perguntar sobre o sentido da legalidade enquanto dispositivo constitucional. Na década de 60, o problema central foi o da extensão retroativa dos prazos prescricionais dos delitos praticados pelo nacional-socialismo. E na década de 90, o debate se reacendeu em torno do problema da punibilidade das violações prima facie legais de direitos humanos na Alemanha Oriental
Poder-se-ia demonstrar o mesmo em relação à maioria dos grandes temas que acima mencionei. O que me importa, contudo, é extrair uma conclusão. A conclusão é a de que uma ciência do direito penal que se ocupa apenas de si própria, de seus próprios conceitos e de suas próprias construções, não existe em lugar algum, e muito menos no país que tem reputação de ser teórico por excelência. A contraposição popular entre um gênio alemão, teórico e um gênio anglo-saxão (ou por vezes latino), prático é, pelo menos no que diz respeito ao primeiro, falsa. O gênio alemão não é meramente teórico, e sim teórico na medida em que o sente necessário para resolver o problema prático. E talvez esteja aqui a genialidade deste gênio.
Outro exemplo talvez esclareça o que se está dizendo. Discutimos hoje acaloradamente as relações entre culpabilidade e prevenção, o chamado conceito funcional de culpabilidade. Mas o sentido desta discussão aparentemente abstrata é, em grande parte, a solução de problemas um tanto concretos, muitos deles cuja mais importantes reflexos se fazem sentir fora do chamado direito penal nuclear, a saber, no direito penal econômico. Um desses problemas é, por ex., se aquele que se encontra em erro de proibição já terá a inevitabilidade deste reconhecida se tiver ido a um advogado que dá um parecer espontâneo, ou se a inevitabilidade só se poderá admitir quando o advogado, antes de emitir seu parecer, examine cuidadosamente a questão; outro deles é se a informação errônea de um agente público (por ex., de um policial), já fundamenta a inevitabilidade, ainda que o conteúdo da informação não pareça plausível. É claro que do conceito abstrato ao problema concreto há um longo caminho, que pode ser percorrido de várias maneiras. Ainda assim, será o conceito abstrato que mais ou menos orientará como se dará o percurso. Por ex., uma visão que centre a culpabilidade apenas no poder-agir-diversamente tenderá a inclinar-se pela negação da evitabilidade nas duas hipóteses (e assim também decidiu a jurisprudência alemã, partindo de uma tal perspectiva).
E por isso o modelo acaba sendo, além de inexato, pernicioso. Porque a sugestão nele contida, de que o que importa são os grandes temas, leva a que nos afastemos dos problemas concretos. Acabamos atribuindo valor científico apenas aos grandes temas, admirando apenas aqueles dentre nós que escrevem sobre estes grandes temas, com isso desprezando e desestimulando aquele que tem o fôlego e a finura necessários para embrenhar-se nas pequenas, mas dificílimas questões concretas. Não vemos que estamos fazendo não grande dogmática, mas dogmática pela metade. Parece-me que, ao invés de discutirmos culpabilidade e prevenção, temos de discutir os critérios da evitabilidade do erro de proibição; ao invés de só falar abstratamente na legalidade, temos de sair à busca de critérios diferenciados para fixar os limites concretos de exigência do
referido princípio face, por ex., a normas penais em branco e a conceitos indeterminados. Ou, para usar um exemplo brasileiro: ao invés de discutir-se a possível redução da idade mínima de imputabilidade penal, de um lado, e as relações entre culpabilidade e prevenção, do outro, dever-se-ia tentar elevar o nível do primeiro debate aproximando-o e enriquecendo-o com o que sugere o segundo.
Para um último exemplo, pense-se na discussão, bem conhecida no Brasil, sobre “sociedade do risco” e “modernização do direito penal”. Enquanto essa discussão for travada com base em conceitos globais, continuaremos a ver teses manifestamente errôneas serem sustentadas como se fossem inquestionáveis para um penalista liberal. Não raro se vê uma condenação indiferenciada de todos os bens jurídicos coletivos, sem que se mencione uma palavra sobre os delitos de corrupção, que têm por objeto de proteção um bem claramente coletivo; ou uma recusa total aos delitos de perigo abstrato, considerados mesmo inconstitucionais, sem que se esclareça se esse juízo de inconstitucionalidade atinge também o art. 270 CP (envenenamento de água potável). Os critérios com base nos quais se poderá distinguir o legítimo e o ilegítimo no direito penal “moderno” têm de ser muito mais sofisticados do que “bem jurídico coletivo” e “crime de perigo abstrato”, e só será possível formulá-los sujando as mãos com os desafios que nos impõe cada tipo da nova legislação penal.
O grande teórico é como uma sequóia. Não é por acaso que ela não cresce no deserto, mas apenas no solo fértil e firme de um intenso e sofisticado debate sobre problemas.


Dr. Luís Greco * Doutor em Direito, LL. M. pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, Alemanha. Assistente científico junto à Cátedra do Prof. Dr. Dr. h. c. mult. Bernd Schünemann, na mesma instituição.