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O Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, fundado por pesquisadores com uma visão humanista de direito, dá as boas vindas a todos aqueles que como nós receberam a missão de lutar para que o ser humano sempre esteja acima das superestruturas sociais, sendo o alfa e o ômega do processo de construção de uma sociedade livre e justa.















































































sexta-feira, 26 de novembro de 2010

DIREITO PENAL, EVASÃO DE DIVISAS E O CHAPÉU DE GEISSLER.

Na luta pelos domínios de Uri, um bucólico cantão austríaco, o tirano Hermann Gessler – sequioso por demonstrar seu poder – obrigara a todos quanto por lá passassem a saudar um esgarçado chapéu que pendia em uma haste. Soldados asseguravam que a ordem fosse prontamente cumprida; e ao menor sinal de renitência submetiam os desavisados a pesados grilhões. Heroicamente, Wilhelm Tell não se dobrou à esdrúxula imposição, restando condenado a manejar uma balestra contra a cabeça do próprio filho. Eis o mito impregnado nas tradições germânicas, e difundido mundialmente...
Por vezes, o Estado atua como esses soldados de Gessler. Tutela, com a violência da pena criminal, a observância de imposições absolutamente despropositadas e inúteis; visando a mera demonstração da sua potestade... Poder pelo poder; força pela simples força!
Não vem ao caso discutir o conhecido apotegma de Blaise Pascal: ‘o Direito sem a força é impotência; mas a força sem o direito é tirania’, questão de resto sondada profundamente por Jacques Derrida (A força da Lei, Martins Fontes). Aqui, fico apenas com o marcante exemplo do direito penal cambiário, cujos preceitos têm censurado - com a restrição da liberdade de locomoção e com todas as suas mazelas - o descumprimento de imposições semelhantes àquela do cantão de Uri: a simples recusa de se dobrar o joelho para o chapéu do rei...
Por etapas: na sua origem, a questão está intimamente associada à chamada ‘norma monetária’. Conquanto a redação prístina do Código Comercial de 1.850 e do Código Civil de 1.916 houvesse permitido que os pactuantes escolhessem as próprias moedas a serem empregadas para a liquidação de seus contratos, é fato que – desde 1.920 – o Estado brasileiro tem proibido a celebração de acordos destinados a empregar moeda estrangeira em solo brasileiro, como meio corriqueiro de pagamento (atualmente, é o que dispõe a Lei n. 10.192/01).
Os exportadores – ao receberem dólares no exterior – não os poderão empregar, em solo brasileiro, para pagamento de seus alugueres; de seus empregados; de suas despesas, enfim. Os importadores tampouco poderão pagar seus fornecedores internacionais com a moeda brasileira, ainda não considerada ‘dinheiro forte’ e, portanto, recusada além das nossas fronteiras, em regra.
Sob esse quadro, a moeda estrangeira torna-se uma mercadoria, suscetível de precificação, disputada pelas pessoas. Seu preço submete-se, tanto por isso, à lei da oferta e procura, ficando condicionado pelas expectativas dos agentes do Mercado. Em boa lógica, quanto maior o volume de dólares em um dado país, menor será o seu valor (quando confrontado com a moeda nacional), e vice-versa, salvo alguma anomalia do mercado.
O problema todo é que, com o Tratado de Bretton Woods – celebrado em 1.944, em New Hampshire, EUA (responsável pela criação do FMI) – os países estipulantes obrigaram-se a tabelar suas moedas frente ao dólar. Vale dizer: a manter uma tarifa constante da moeda própria, quando comparada com o dinheiro estadunidense. Por conseqüência, ao que interessa, a República Federativa do Brasil obrigou-se, então, a controlar o volume de divisas na posse de bancos e de outros agentes econômicos brasileiros.
E como conseguiria isso? Apenas mediante o monopólio estatal. O Estado obrigava-se a adquirir todas as divisas ofertadas (constrangendo os exportadores a repassar-lhe os dólares pagos, pelos adquirentes, no
exterior); e a fornecer as divisas demandadas (repassando dólares para os importadores, p.ex.). Dado que o Estado não fabricava (e ainda não fabrica, ao que se saiba) dólares, a solução era a restrição draconiana do fornecimento de divisas para viagens; cirurgias no exterior; para a freqüência a algum curso internacional, etc. Àquela época, o Estado brasileiro tinha uma resposta padrão: este mês o senhor não poderá viajar para a Europa, eis que as divisas serão destinadas prioritariamente para a aquisição de petróleo e demais insumos da indústria de base.
Cediço, todavia, que esse monopólio criou espaço para mercados paralelos, destinados a satisfazer necessidades não atendidas suficientemente pelo Estado. Na sua origem, o mercado clandestino decorria dessas restrições de acesso a divisas (vedação de cirurgias no exterior, reitero), alimentado por exportadores revoltados com a depreciação imposta pelo Estado para os seus dólares (eis que, no paralelo, conseguiriam preço muito superior àquele tabelado). A grosso modo, cuidava-se de subsídio público para determinadas atividades (p.ex., cultura cafeeira), carreando-se o custo para os importadores e outros agentes de mercado, conforme a estação.
Sob tal modelo econômico, o Estado impunha licenças prévias para as transferências de divisas para o exterior, fundadas em um exame de conveniência e oportunidade, absolutamente discricionário, com pontuais exceções (p.ex., direito subjetivo à remessa, pelas subsidiárias de empresas internacionais, de lucros e de juros). Destaco: tratava-se de uma análise ao talante da autoridade administrativa de plantão, quem poderia simplesmente indeferir a remessa por entender que, naquele mês, a transferência ameaçaria comprometer as ‘linhas de crédito internacionais’.
Esse o contexto econômico em que a Lei n. 7.492, de 1.986, foi cogitada. Seu artigo 22 tutelava, na origem, esse monopólio estatal; a preservação do volume de divisas em circulação no país. Estava impregnada do pressuposto de que a ocultação de dólares no exterior seria crime lesapátria, a demandar a mais gravosa punição, porquanto comprometedora do modelo fundado em uma concepção autoritária de Estado e no centralismo econômico.
Deixo de examinar tópico por tópico cada texto de lei elaborado nesse período. Cumpre apenas enfatizar que esse quadro mudou; e mudou substancialmente, sem que as normas penais tenham sido atualizadas. Os preceitos penais tutelam obrigações muitas vezes despropositadas, irracionais, quando não meros caprichos.
O monopólio começou a ruir com a criação do Mercado Flutuante, em 1.988 (dólar turismo), permitindo aos interessados a compra de dólares – até certo limite (US$ 4.000,00) – junto a agências de turismo. Inicialmente, permitiu-se a alimentação daquele novo mercado com dólares advindos do mercado paralelo (eis que se dispensou a identificação do vendedor de dólares para casas de câmbio, por alguns meses – Resolução n. 1.552/88, CMN).
Seguiu-se a criação do chamado ‘dólar comercial’ (Resolução n. 1.690/90, CMN) e – indo direto ao ponto – a cabal flexibilização do mercado de câmbio com a criação das chamadas CC-5, do tipo ‘3’ (de instituições financeiras estrangeiras), meio empregado pelo BACEN para assegurar confiança nos agentes econômicos internacionais.
A Carta Circular n. 05, de 1.969, previa apenas duas espécies de contas CC-5: as de ‘sobra’ de câmbio e as residuais (‘outras origens’). Àquela época, caso algum estrangeiro houvesse trazido consigo – ingressando no
Brasil – US$ 100.000,00 e aqui gasto, em cruzeiros, o equivalente a US$ 60.000,00, poderia abrir (mesmo sem CPF) uma conta corrente mantida em solo nacional e, ato contínuo, depositar o sobejo (ainda em cruzeiros) – equivalente a US$ 40.000,00 – e fechar câmbio e obter, no exterior, divisas correspondentes. Isso tudo sem a necessidade de prévia aquiescência e controle pela autoridade bancária central, ao contrário do que ocorria com as demais operações. Essa era a sistemática da CC-5 do tipo ‘1’.
Situação distinta ocorria com as CC-5 do tipo ‘2’ (outras origens), eis que destinadas ao pagamento, em solo brasileiro, de bolsistas estrangeiros. Aquela conta já não permitiria a transferência para o exterior, salvo quando concedida prévia licença pelo BACEN (análise de oportunidade e conveniência). Vale dizer: a conta de ‘outras origens’ não permitia a remessa sem que, antes, fosse concedida licença pelo BACEN.
Mas aquele quadro, constituído em 1.969, foi modificado com a já referida criação do mercado flutuante e do ‘dólar comercial’ (em que se permitiu a definição das taxas pelos próprios agentes do mercado). Em 1.992, com a Circular n. 2.252, o BACEN criou nova espécie de conta de não domiciliados – i.e., a chamada ‘tipo 3, de instituições estrangeiras’ – autorizando que Bancos estrangeiros captassem recursos em solo nacional, e - mesmo sem o prévio exame do BACEN, quanto a cada uma das operações – que fechasse câmbio e liberasse recursos correspondentes, no exterior.
Seguiram-se as Circulares n. 2.242/92 e n. 2.677/92, do BACEN, dispondo sobre a identificação dos remetentes e dos beneficiários, questão discutida em inúmeros processos judiciais. Mantiveram, porém, esse norte: o de que tais contas permitiriam a disponibilização de divisas no exterior, a favor dos depositantes, sem prévio exame do BACEN, quanto a cada uma das operações. Importa dizer: consagrou a concepção de que a constituição de disponibilidades financeiras no exterior seria um verdadeiro direito subjetivo individual, não mais condicionado a licenças prévias.
As chamadas ‘transferências internacionais em cruzeiros’ (depois, apelidadas de T.I.R. – transferências internacionais em reais) deixaram de estar condicionadas, pois, à análise de oportunidade e conveniência, pelas autoridades administrativas. Buscava-se, com isso, assegurar aos investidores internacionais a promessa de fácil retorno. Como diz Garófalo Filho, ‘... ao contrário dos pássaros, o dinheiro não ingressa onde há gaiolas’ . Logo, o Plano Real – fundado na captação internacional de recursos – deve muito da sua performance àquelas regras, ainda que aparentemente ilegais (eis que ofensivas às regras dos arts. 18 da Lei n. 4.595/64 e 52, ADCT, porquanto permitiam que bancos estrangeiros atuassem no Brasil sem prévio Decreto Presidencial).
Ora, naquele período – ao que se infere das suas circulares - o BACEN estava muito mais preocupado com a flexibilização do câmbio do que, propriamente, com qualquer política de compliance; com a suposta identificação dos remetentes e beneficiários. Explico.
Segundo a Circular n. 2.242/92 (art. 2º, inc. III) o interessado em constituir disponibilidades financeiras no exterior, via CC-5, deveria tomar a iniciativa de declarar, junto ao Banco interveniente, a natureza da operação; cabendo ao Banco depositário (i.e., mantenedor da conta corrente ‘normal’) a identificação do remetente e do destinatário. Como fazê-lo, se as contas CC-5 eram em tudo idênticas às demais? Se os controles analíticos previstos na Circular 2.259/92 não haviam sido implantados? Isto sem considerar que, naquele período, não havia um sistema informático como o atual.
Já a Circular n. 2.677/96 – já sob a égide da Lei n. 9.069/95 (art. 65) – corrigiu pontuais defeitos do diploma anterior. Obrigou, então, aos bancos mantenedores das contas CC-5 a identificação dos remetentes e
dos destinatários de recursos (art. 8º). E, pela suposta fraude contra aludida regra, muitos têm sido submetidos à argüição penal, acusados da prática de evasão de divisas (art. 22, Lei n. 7.492).
É gritante a impropriedade – para fins penais - do art. 1º, inc. II da Circular n. 2.242/92 (renovado no art. 7º, inc. II, da Circular n. 2.677/96, BACEN) quando pretende definir o conceito de ‘saída de divisas’. Cuidava-se de ficção destinada a justificar a captação, em solo brasileiro, de recursos por bancos estrangeiros sem prévio decreto presidencial. Segundo aquela Circular, a captação de recursos junto a uma CC-5 do tipo ‘2’ (de casas de câmbio paraguaias, p.ex.) seria o mesmo que captação de recursos no exterior. Por via de conseqüência, burlava-se – por vias oblíquas – a vedação do art. 18 da Lei n. 4.595 e do art. 52, ADCT já referidos acima.
Circular não pode pretender deturpar os conceitos veiculados na Lei Criminal, sob pena de agressão ao art. 5º, inc. XXXIX, CF. Do contrário, não tarda e teremos ‘portarias dicionários’ definindo o conceito de morte; de lesão; de dano, de modo a ampliar as cominações penais previstas nos arts. 121; 129; 163, CP, etc.
D’outro tanto, desde a flexibilização do Mercado de Câmbio, não há mais interesse na preservação do volume de divisas em circulação, eis que rompido o regime de monopólio. O próprio Estado, através do BACEN, reconheceu, ainda que tardiamente – como verdadeira prerrogativa individual – a constituição de disponibilidades financeiras no exterior. Até que enfim temos um quadro normativo tendente a dar cumprimento à garantia do art. 5º, inc. XV, da Constituição de 1.988 (já presente, por sinal, nas anteriores).
Atualmente, aquela norma do art. 22 da Lei n. 7.492 somente guarda sentido, caso orientada à tutela do controle informacional, pelo Estado, de modo a planejar eventual intervenção (via Dirty floating – i.e., retirada ou lançamento de divisas do mercado, de modo a influenciar episodicamente as taxas de câmbio). Questão por sinal já solucionada pelo Tribunal de Justiça da União Européia, com o conhecido caso ‘Aldo Bordessa’, com fulcro na diretiva 361/88 (decisão de 23 de fevereiro de 1.995).
Mas e o chapéu de Gessler?
Partindo da premissa de que, atualmente, o art. 22 da Lei n. 7.492 somente se justifica diante do interesse no controle de tais informações de câmbio, são possíveis duas conclusões: (a) a primeira, a de que – para tal fim – interessa ao Estado apenas o controle estatístico quanto ao volume de disponibilidades constituídas no exterior (a impropriamente denominada de ‘transferência internacional’, eis que as divisas já estão no exterior, em tal caso); (b) a segunda, a de que aludido controle também pode se prestar para a prevenção da lavagem de dinheiro (questão submetida, todavia, à lei própria, n. 9.613/98, com requisitos específicos).
E ainda que se suponha que a Lei Penal – para fins cambiários – nesse novo contexto de abertura econômica teria realmente interesse na cabal identificação dos remetentes e dos beneficiários, em tais transações, é fato que – em verdadeira aporia – o Estado (conquanto supostamente esforçado em tal identificação, art. 8º da circular 2.677) dispensou os bancos de cobrarem qualquer lastro documental (art. 10, §1º, da aludida circular).
Àquela época (1.996/1.997), a República Federativa do Brasil – pelo Poder Executivo - não preconizou qualquer banco de dados; qualquer sistema de filtro de informações; qualquer mecanismo de crítica de CPF’s fraudulentos; qualquer mecanismo de compartilhamento de informações com a Secretaria da Receita Federal. Limitou-se a exigir a identificação de remetentes e de destinatários, nada mais!
A norma é despropositada, quando compreendida em toda a sua amplitude, portanto. Exigiam-se dados (nomes dos remetentes e dos beneficiários) sem que fossem empregados para qualquer fim útil. Nada – absolutamente nada! – seria empreendido com tais dados (exigidos pelo art. 8º), dado que não confrontados com documentos; dado que não confrontados com a situação patrimonial de cada remetente ou beneficiário. Exigiam-se, dos bancos mantenedores nas contas CC-5 (já sob a Circular 2.677) a identificação dos envolvidos em tais operações; sem que – todavia – se exigisse o mais importante: a conferência de documentos, a serem lançados no dossiê reportado ao final do art. 8º daquele mesmo diploma.
Mal comparando, a imposição de pena, fundada no eventual descumprimento daquela regra do art. 8º, da Circular 2.677, pode se aproximar da figura daquele professor, supostamente austero que – exige trabalhos árduos dos seus alunos – mas que jamais lerá. Depois, tendo jogado fora tais provas sem lhe dedicar qualquer atenção, venha a sancionar quem não as tenha entregado. Para que sanção, se os dados eram inúteis? Por sinal, questão que encontra expressa resposta legal, nos termos do art. 17 do Código Penal brasileiro (que reconhece que não há crime sem lesão significativa a bens jurídicos dignos de tutela), como já reconheceu o Eg. TRF da 4ª Rg. ao julgar o caso de autos n. 2005.70.00.0003484-8 (rel. Des. Fed. Tadaaqui Hirose, DJE de 27.08.2008).
Urge que o chapéu de Gessler seja retirado do pedestal, e que não se punam mais comportamentos em si inidôneos para lesar qualquer bem jurídico; sobremodo quando eventual lesão decorre muito mais da própria inoperância legislativa ou mesmo administrativa do Estado.

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